quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A Poesia pelo poeta

No átrio dos Vales e das Avenidas…



Nas ruas por onde ando, a voz é um silêncio, um sorriso fúnebre e agreste. Quente, o vale cobre a tempestade que suscitara a génese das palavras com que acolhemos a mágoa nos dias em que nós mesmos não fomos capazes de cuidar de nossas feridas, acolher nossas frustrações, meditar sobre marcas de vidas passadas e deixarmos de depositar a culpa sobre a costura dos lençóis.
E a tempestade é uma mão cheia de misérias e fortunas. Uma ideia paradoxal que nos assalta a quietude do pensamento. A quem dará a luz sua aparência primeira? – Interroga-se a mulher, sem receio que alguém a jogasse a primeira pedra. Ao dia ou à noite? Quem desta água beberá sem que se saiba já ter morrido? Quantas vezes me vi provando do cálice e argumentando a triste ideia de desamparo. Entretanto, é do cálice que renasce a voz e é da palavra que se ergue o grito que guarda o silêncio.
Há muito que a condenação se perdera por entre as falas, pois o amanhã não fora a tempo de evitar o suicídio das horas em que triste esperamos que o dia amanhecesse e nos buscassem por entre as rosas de algum quintal. Hoje, a voz é exactamente um silêncio morto, vazio, inútil, que facilmente se pode reter sobre as mãos.
Esta noite, um homem chamará para junto de si o vento, para que sua fala seja uma renovada voz que transcenda as avenidas, vales e montes; o medo e o tédio, a carícia e a angústia. Do detalhe ficarão as sílabas nocturnas, ou se quisermos, os sinais de sílabas antigas, tão antigas que elas mesmas desafiarão as rugas que nos causam o tempo.
E lá diz a mulher: «Descanse sua agonia por entre as cordilheiras do esquecimento que hoje mesmo enterrei o tempo». E mostra as suas mãos cheias de barro para o homem. E prossegue: «enterrei o tempo porque até este se deixara envelhecer, e tudo que resta não é senão um postal com escritas que mal conseguem descrever os dias».
Diz-me por que escreves como se apagasses as palavras que reflectem o passado? Como se nada mais existisse que não fosse um detalhe de vida estranhamente entregue à fraqueza dos homens?
«Nada mais é frágil» – responde a mulher. Dê-me antes a palma da tua, deixe-a repousada sobre a minha e escute o silêncio de tão velho que está. Vem, pouse-a sobre as feridas de minha triste vida e sinta o que fizera comigo o amor. Feriu-me com feridas dóceis, amargurou-me o coração, mas não me deixara esquecida como está o tempo. O tempo está esquecido e velho. Inútil como os trapos. Apenas, só, os trapos o definirão. Mas vem, pouse-a sobre o mais frágil testemunhar que tenho da vida – a dúvida.
Em segredo diríamos nossas confissões, acharíamos o ângulo da vida para o qual pudéssemos outorgar à voz uma insígnia, para facilmente descobrirmos por que cantam os pássaros logo pelas manhãs. Há para além de um misto de ternura uma voz que chora no átrio das avenidas, ali aonde alguém não quisera olhar para o testemunho das mãos. As mãos também falam da febre que nos assalta a razão. As bocas famintas e sujas de petições, não tão sujas como nossas acções, escrevem dias para que alguém as possa ouvir em públicas assembleias.
E diz o homem à mulher:
«Não será por motivações políticas que crescerão as rosas».
E a mulher:
«Mas será por razões políticas que o tempo se deixará ficar ainda mais velho e torpe do que já está. Ou não vês que os dias embriagam as tempestades, que as manhãs nascem engalanando o desfile das palavras, para que breve seja o poema quando juntos descermos até à terra para que o pó apague de uma vez por todas as marcas que ferem os olhos e a luz?»
«A terra está cheia de enganos. Ou enganam-se os homens mutuamente?»
«Não, talvez estejamos nós mesmos enganados de nós» – a mulher.
E faz-se um longo silêncio, ainda mais velho que o tempo, constata o homem. A voz do vento interrompe, mas ainda assim tudo que se ouve é puramente silêncio. A mulher passa as mãos sobre o seu ventre e diz para o homem: «estou grávida».

In. Jornal de Angola, Suplemento Vida Cultural
Marçal-Luanda, 07 de Fevereiro de 2008
Nok Nogueira
Escritor e jornalista


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