terça-feira, 19 de agosto de 2008

IIº Momento
(Interiorização do Conceito Kudurismo na Arena Artística Angolana)



O fim da década de oitenta teve como grande ponto de realce em Angola a “linha de equilíbrio”, caracterizada pelo fim de um fenómeno político que tinha como desígnio manter as balizas de um sistema ideológico marxista-leninista que aos poucos se fora rendendo à dinâmica de uma importante época na nossa história recente. Logo no início dos anos noventa, assistimos a uma cedência de espaço àquilo a que chamamos de discurso livre, cujas linhas eram mais independentistas, ou pouco influenciáveis pelas tendências impostas pelo então sistema, devido ao facto de estarmos mais abertos aos meandros da descrição temporal e da ousadia criativa, fugindo ao modelo que tinha sido adoptado como forma de desenvolvimento político-social e cultural dos povos pelos países que haviam aderido ao Bloco Socialista. Por conseguinte, após a queda do mesmo, abriram-se várias frentes que se foram depois consolidando à medida que se julgavam inseridas no campo artístico. Numa altura em que pela América e por alguns países da Europa já se podia sentir os efeitos de um movimento ideológico que ia impondo formas outras de executar a produção musical ligada sobretudo às pistas de dança – a Dance Music.

E nesta frente, dá-se destaque à House Music, inicialmente conhecida como warehouse music, mas que com o andar do tempo apareceu simplesmente designada por house music. Estilo que foi primeiramente explorado por Dj´s nos Estados Unidos da América, mais propriamente em Chicago, Nova Iorque, Michingan; e pela Europa, Reino Unido, Berlim, Holanda e Bélgica. A House Music era então definida como “um género musical de batida seca, 4/4, com "viradas" de muitas batidas, vocais femininos, melodia alegre e com velocidade próximas a 120 a 135 BPM (Batidas por Minuto)”. Deste importante género musical nasceram outras subvertentes ou subgéneros, que passamos a seguir a defini-los e a dar-lhes um enquadramento histórico:

Acid house: Estilo mais radical de house, género musical produzido em estúdio. O acid surgiu de uma brincadeira de um Dj de Chicago chamado Pierre, com o sintetizador analógico Roland TB-303 (da Roland Corporation em 1982 e 1983 que desempenhou um papel crucial no desenvolvimento da música electrónica contemporânea.), máquina esta que veio a debitar o som acid que saiu em bastantes discos. A sustentação rítmica do acid era feita por contrabaixos electrónicos e baterias programadas. Esses instrumentos são misturados com o auxílio de computadores a sons distorcidos de guitarras dos anos 60, orgasmos femininos repetidos e sequenciados, metralhadoras, explosões e diálogos de filmes. Assim como o house, o acid house é feito para tocar em pistas de dança, nas quais não podem faltar canhões de laser, luzes estroboscópicas, máquinas de gelo e fumaça.
Acid break: Resultou da fusão do Acid House com suas sustentações rítmicas feitas por contrabaixos electrónicos, sons distorcidos de guitarras dos anos 60 e baterias programadas, normalmente criado com o TB 303 da Roland, com as batidas quebradas do Breakbeat.
Soulful House: O estilo de House com forte influência da Soul Music americana. Herdeiro do Garage House tem nos DJs de New York seus maiores representantes.
Deep House: Estilo mais introspectivo de House até ao momento. Como o nome indica, baseia-se em sons profundos e calmos, sobre a batida 4/4 característica do House. É representado por diversas escolas com referências diferentes, do mais orgânico ( West Coast) ao sintético ( Berlin, Londres).
Electro House: Estilo de House com timbres sujos, sintéticos e sombrios e com linhas de baixo ácidas, característica emprestada do electro da década de 80. sneaky sound system retrata bem a electro house.
Progressive House: Estilo de House que surgiu no inicio dos anos 90. Consiste numa batida 4 por 4 com um bass mais profundo, com uma atmosfera mais melancólica e emocional onde as mudanças na música ocorrem pouco a pouco (A música vai crescendo durante a sua duração e ganhando mais energia, mais força, daí o nome progressivo).
E finalmente:
Tribal House: Que consistia no uso de sons considerados tribais nomeadamente na área da percussão, que é exaustivamente trabalhada. Pensa-se que o tribal surgiu de uma ligação entre a música africana e a electrónica. Pode-se dizer que o Tribal é o casamento da House Music com ritmos africanos, gerando uma mistura de sons alucinantes. O Tribal ou House Tribal tem batidas pesadas e fortes, porém menos repetitivas. (o que certamente o diferira do Kuduro).
Com efeito, não é correcto afirmarmos que o Kuduro seja uma música essencialmente voltada para as raízes angolanas (ou seja que tenha surgido da fusão do Semba e o Zouk, como temos apreciado por aí), tudo porque antes do Kuduro propriamente dito termos passado por essas subvertentes da música house com a forte influência da produção electrónica, o que não quer dizer que o Kuduro hoje tenha deixado de o ser. Continua a ser sim uma música electrónica mas mais introspectiva, uma característica que certamente o diferirá de todas as outras subvertentes da música house, mesmo até em relação àquelas que tenham surgido a nível de outros países africanos. Logo, e tratando-se de uma das vertentes da house é mais provável que o Kuduro seja a perfeita miscigenação rítmica de que se pretendia dar à música house quando se lhe adicionaram elementos tipicamente africanos.

Mas em nosso entender achamos que esta relação não é nada casual, uma vez que em outros quadrantes podermos constatar estilos musicais que apareceram primeiramente como uma forte tendência electrónica mas que depois de inseridas num determinado contexto foram se ajustando a ele, pelo que se nota aqui as verdadeiras raízes que foram adicionadas à música electrónica oriundas de África, (na fase Tribal House) o que nos leva, uma vez mais, a concluir que num contexto europeu tenha ocorrido precisamente o mesmo.

O princípio dos anos noventa foi, digamos assim, o período da explosão do mercado musical angolano, quiçá mesmo mundial, pelo que se assistiu à introdução de uma série de elementos novos à música e até a consolidação de outros géneros que não tinham conhecido ainda aquele momento único que se pudessem afirmar como sendo géneros completamente inseridos na cultura musical nacional. Dos géneros musicais que ganharam o espaço nessa altura destaca-se também o Hip Hop, que acabou por manter uma relação estreita com o Kuduro, e que até hoje persiste, basta olharmos para a pauta melódica do Kuduro que é feito hoje.

Um outro papel que se não deve ignorar, quando falamos do Kuduro, é o papel desempenhado pelos Dj´s, a quem se poderia eventualmente atribuir o maior protagonismo como pioneiros deste género de música, bem como àqueles que deram forma e identidade às danças que foram surgindo, acompanhando as observações rítmicas que iam dando corpo às músicas. E mesmo hoje, apesar de assistirmos já a uma maior afirmação dos intérpretes, que volta e meia nos vão trazendo cada vez mais um estilo introspectivo e interactivo, são ainda os Dj´s que vão marcando diferença com algumas produções que tornam o Kuduro num estilo musical mais contextualizado, deixando aquela influência excessivamente electrónica, apesar de a sua produção estar ainda muito patenteada nessa perspectiva por mais paradoxal que pareça por motivos de ordem tecnológica.

Historicamente, o fenómeno Kuduro, já com características mais vincadas para aquilo a que hoje consideramos como marcas puramente angolanas, nasce primeiro como Açúcar enquanto género musical, apesar de um pouco antes ter surgido uma outra dança que não tenha se calhar ocupado o lugar que o Kuduro ocupou que foi a Lambula. Para além, é claro, de ser um fenómeno que se confunde permanentemente com os estilos de dança que foram surgindo no início dos anos noventa. Aqui não nos podemos esquecer que todo estilo de construção instrumental electrónica nessa altura era tido como simplesmente Batida ou estilo Underground.

Entretanto, essas batidas que inicialmente foram da autoria de Dj´s como Bruno de Castro, Beto Max, Grupo Necax Brothers, Lucky Gomes, entre outros. Batidas essas que tiveram como principais promotores Cláudio Silva e Ruca Fançony no programa Top Laser da LAC – Luanda Antena Comercial, no Grupo Desportivo da Banca, bem como em diversas raves que iam acontecendo pela cidade de Luanda, sem fazer menção naturalmente àqueles nomes cuja memória agora nos atraiçoa.

No princípio era fácil denotar uma construção rítmica mais pautada, sendo que a inclusão de um batuque e outros acordes marcou o começo disso a que chamamos Kuduro, que mais tarde foi ganhando uma tendência mais electrónica, mas com enquadramentos rítmicos muito voltados para àquilo a que ouvimos hoje. Assim nas entrelinhas, denotávamos um Kuduro com as letras sempre curtas e repetitivas, do tipo desabafo, embora muito mais tarde tenha adoptado uma linha mais pessoal em resposta à ascensão de este ou aquele nome que hoje enquadram-se perfeitamente naquilo a que consideramos beefs. Neste sentido, vamos convir que o género kuduro dialoga consigo mesmo. Com letras, às vezes, confusas, com um carácter às vezes despropositado…tornando um género espontâneo e cada vez mais espontâneo. Esta espontaneidade, entretanto, a que nos referimos com algum agrado traduz em palavras o que de facto foi acontecendo à margem dos exercícios demagógicos, paisagísticos e até mesmo académicos em relação ao Kuduro, segundo os quais o Kuduro não tinha nada a ver com uma manifestação artística. Assim, e em jeito de conclusão, podemos aferir que o Kuduro é a perfeita adaptação do house music a um contexto africanizado ou angolanizado, uma música que deve todo o mérito à criatividade de nomes que nunca deixaram de olhar para o amanhã como se fossem encontrar o horizonte mais perto delas.

Importa, se calhar, realçar o facto de termos até agora assistido a três distintos momentos do Kuduro, do período portanto que vai do Açúcar (estilo de dança), isso em 1993 ao momento actual. Assim temos:

1º Período
Explosão: O Kuduro era essencialmente marcado por uma vertente ainda influenciada pelas batidas tecno, com uma cadência mais voltada para o tecno propriamente dito. Este período vai de 1993 a 1995, e é o mais curto dos períodos. Nasce igualmente com o programa que era promovido na LAC por Cláudio Silva e Ruca Fançony, o Top Laser. Realce também para as várias raves que eram realizadas no Grupo Desportivo da Banca. Nomes que se destacaram nesta etapa: Bruno de Castro, Lucky Gomes, BMAX, Tony Amado, Necax Brothers, Sebem, (Showcarangue, Palucho, Bebé Chorão, Bebé Diabo – dançarinos).

2º Período
Afirmação: O segundo período, que vai mais ou menos de 1995 a 2003, é o mais longo da história do Kuduro, já como uma vertente mais voltada para uma criação instrumental cada vez mais com menos influências do tecno, ou da house music tribal. Neste período é cada vez mais evidente um desdobramento tanto dos intérpretes quanto dos Dj´s. Este segundo período é, chamemos assim, a fase de ouro da história do Kuduro, uma vez que é precisamente nessa fase que o Kuduro (dança) dá nome e identidade àquilo que se produzia como música, com o surgimento em alta de Tony Amado, como cabeça de proa do género. Nomes que se destacam: Tony Amado, Sebem, Necax Brothers, Bruno de Castro, Viriato Víctor, Tortulhos, MGM Zangado, Rei Webba, Ângelo Boss, Queima Bilhas, Camilo Travassos, Virgílio Fire, Smal do Arraso, Helder Jr., Rei Tanice, Os Actuais, Znobia, Dj Manya, Salsicha e Vaca Louca, Os Radicais, Dj Nike, Dj Billabong, Dj. Malvado, Camilo Macunge, entre outros.

3º Período
Crise e Viragem: O terceiro período é o mais polémico da história do Kuduro e vai mais ou menos de 2003 aos tempos actuais. Designamos Crise e Viragem por ter vivido exactamente um momento de crise e ter resistido a ele, e por conseguinte ter imposto uma nova dinâmica ao género musical, pelo que consideramos ter havido uma viragem muito bem conseguida. Figuras que se destacam: Sebem, Tony Amado, Kome Todas, Smal do Arraso, Pai Diesel, Máquina do Inferno, Nacobeta e Puto Português, Fofandó e Puto Saborosa, Puto Prata e Noite e Dia, Bobany King, Nayo Crazy, Magnésio e os Caixa Baixa, Shaquira e Paranóico, Puto Lilas, Bila Bila, Znobia, (é também neste período em que voltamos a assistir a uma explosão dos Dj´s), Dog Murras, Os Lambas, Bruno M, Os Kalunga Mata, Os Turbantes, Turma Tommy, Mandiloy, Dj Walter Laton, Dj Kilamu, Dj Texas, Havaianas, Puto Bayó, Própria Alicha, Puto Agressivo e Kamba Toy, Dj Mankilla, Dj Alex, Dj Olavo, Bobo G, Os Vagabanda, Agre G, Os PPs, Agres, Dj. Bula, Dj Francisco Paulo, Zoca Zoca, etc…!

Morro Bento – Luanda,
Publicado no Jornal de Angola, Suplemento Vida Cultural, de 17 de Agosto de 2008

Nok Nogueira
Escritor e jornalista

Nenhum comentário: