terça-feira, 12 de agosto de 2008

Coisas e “cuesas” de Cabê Adão

Dez anos de mediatismo em “Aventuras de Cabetula” de Olímpio e Lindomar de Sousa


O personagem Cabetula Adão, Cabê na intimidade que felizmente consegui conquistar dele, não representa apenas a sátira que vem movendo a pena desenhista e humorista de seus autores, Olímpio e Lindomar de Sousa – exímios artistas com um percurso apreciável a todos os níveis e recheado de aventuras particularmente intensas e, além do mais, com a grata fortuna crítica e o valor acrescentado de terem bebido da própria fonte que foi o génio e velho mestre Henrique Abranches: incontornável figura do nacionalismo angolano e da cultura nacional, além, é claro, de ter sido o grande mentor e impulsionador do movimento BD em Angola –, mas sim o espelhar de situações comummente vividas dentro de um contexto e circunstâncias estonteantes das quais também somos parte integrantes, na melhor ou na pior das intenções.
A ideia de constatação se nos afigura de modo intimista, partindo do princípio de que existe um modelo mais ou menos preciso nas narrativas que cada uma das quatro edições até hoje publicadas nos apresenta, caracterizando sempre de maneira irónica mas sensata a tormenta diária de que se tornara nossas vidas, uma vez que se vem buscando uma também cada vez mais inexplicável tendência de se justificar fins que muita das vezes não olham para os meios nos momentos de os efectivar, tal qual as coisas e “cuesas” que nos trazem em cada uma dessas sempre bem-humoradas e pertinentes aventuras deste personagem que irrompeu já pelas nossas casas adentro, fazendo morada em nossos lares e partilhando dos instantes outonais e primaveris de que a memória dos factos e do tempo se nos apresenta incapaz de descrever. O que já é bom, pois uma tentativa resultaria absolutamente frustrante e não deixaria de colocar uma incómoda mancha negra no curriculum de quem se atrevesse!
Para gáudio dos que têm as manifestações artísticas – independente de que natureza se trate –, como um instante singular para melhor compreender os fenómenos que giram em torno do dia-a-dia das sociedades, a BD não deixa os seus créditos em mãos alheias, nem tampouco em mãos que a prendam em linhas estacionárias. Assim como não é estático o tempo, a Banda Desenhada também não o é, e o exemplo evidente é essa carismática figura que, apesar do silêncio quase terrorista dos nossos agentes culturais em relação a esta belíssima linguagem que é a Banda Desenhada (e porque há efectivamente um apagar da boa memória da BD em Angola, o que é um absurdo de todo tamanho) tem, com alguma “cunha” dos que o lêem e conhecem, resistido a todas intempéries que acredito nos levarão um dia a uma tomada de posição que resulte mais digna e reconfortante para quem um dia sonhou viver o país Angola através da Banda Desenhada.
O humor oriundo do esboço linguístico-expressivo de Olímpio e Lindomar de Sousa – mentores de o Olindomar Estúdio (que já é também um molde de promissores candidatos a banda-desenhistas e cartoonistas, se calhar no intuito de retribuição ao papel e a um provável legado que lhes deixou Henrique Abranches) – para além de sugerir e apelar a tomada de uma consciência colectiva na perspectiva da auto-inversão de valores, é irreverente, mediático, deslumbrante no requinte e na construção de cenários aparentemente cinematográficos, bem como no rigor e no agir sem medos, porque até ontem os artistas perdiam-se em seus próprios medos, em seus itinerantes caminhos, em busca do que se foi esfumando com o tempo em que se suscitava a fúria surrealista, esta mesma que chegou a dar lugar a um momento único e catalisador de ideias reformadoras e dinamizadoras, no sentido de se dar forma ao conceito de identidade nacional e cultural, através do espelhar de fenómenos por nós vivenciados e não partindo de um ponto de vista movido pela utópica e triste ideia de fazer de contas.
Nós rimo-nos quando lemos Cabetula Adão, mas no fundo quem se ri de nós é o próprio personagem que nos tem como uma riquíssima fonte de inspiração com todos os condimentos para uma boa cena de que é testemunha ocular a Banda Desenhada, e principalmente quando se trata de uma sociedade como é a angolana e por conseguinte a de S. Paulo de Assumpção de Loanda (terra de caenches, de muitas “pequenas”, malaikos, kubeles, kazumbis, caretas, papoites e mamoites, mbaias e telelés), apresentando uma outra faceta muita das vezes oculta em nós e que ora é trazida à luz da ribalta com um humor bem doseado e compilado quanto a enérgica genica do gindungo cahombo «na língua da criança que “esparata”», porque na verdade nós somos o espelho humano de nós mesmos, que volta e meia vai reflectindo sem dó nem piedade, muito menos com compaixão, a teia dramática de que se revelam as nossas vidas num tom palaciano mais ou menos irónico e bem electrizante, bem à moda destes novos ventos da globalização.

Marçal-Luanda, 06 de Julho de 2008

Nok Nogueira
Escritor e jornalista

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